Por Wladimir Pomar
O
problema da propriedade do solo, tanto para a produção agrícola, quanto para a
utilização urbana, sempre fez parte da luta de classes, desde que estas
surgiram como decorrência da revolução agrícola e da formação das cidades,
entre 10 mil e 5 mil anos atrás. Durante o escravismo antigo e o feudalismo,
plebeus, mercadores, aristocratas, senhores feudais, burgueses e camponeses, em
muitas ocasiões conflitaram por reformas e revoluções para resolver suas pendências
em torno da propriedade do solo.
Na revolução de Avis, em Portugal do século
14, a monarquia nacionalista e os mercadores se uniram para reordenar os feudos
e liberar parte da mão de obra nobre e camponesa para o comércio marítimo. No
Brasil, nos primeiros séculos após a ocupação portuguesa, a luta pela
propriedade do solo aniquilou a maior parte da população indígena primitiva. E
estabeleceu um sistema latifundiário de sesmarias. Primeiro de plantations
escravistas, fazendas de gado com agregados, e vilas urbanas e cidades de solos
grilados e apossados. Depois, no final do século 19, o escravismo foi
substituído pela agregação no plantio de roças, pelo colonato nas plantations
de café, e pelo sistema de colonização minifundiária no sul do país.
Até
meados dos anos 1960, cerca de 65% da população brasileira se encontrava nas
áreas rurais, a maior parte sendo constituída de camponeses agregados aos
latifúndios. Ou seja, camponeses sem-terra que pagavam ao latifundiário a
quarta, a terça ou a meia do que produziam, pelo favor de trabalharem nas
terras dele. Embora formalmente livres, viviam como prisioneiros por dívidas
com os latifundiários. O que os conduziu, literalmente, a três movimentos de
fuga dos latifúndios. Uma parte foi para as cidades em busca de trabalho na
indústria, que tomara corpo a partir dos investimentos estrangeiros dos anos
1950. Outra parte se deslocou para as zonas de fronteira agrícola, onde se
estabelecia como posseira. E uma outra se engajou na luta contra os
latifundiários, engrossando a mobilização por uma reforma agrária.
A
mobilização e a luta pela reforma agrária, na lei ou na marra, foi um dos
principais pretextos para o golpe militar de 1964. Talvez isso tenha tornado
nebulosa, para muitos, as razões da modernização dos latifúndios então
promovida pelo regime militar. Consideram que a característica dessa
modernização consistiu apenas na “revolução verde”, com o uso
intensivo de máquinas agrícolas e insumos agroquímicos.
Na
prática, desconsideram que a principal razão dessa reforma conservadora foi a
expropriação dos camponeses do acesso à terra e de seus meios de produção. Seu
objetivo central consistiu em transformá-los em força de trabalho liberada da
prisão por dívidas dos latifúndios para ser ofertada no mercado de trabalho
industrial. Esta era a condição básica para o desenvolvimento econômico
associado e subordinado ao capital estrangeiro e para a realização do “milagre”
militar.
Sem
entender isso não se consegue explicar porque a população rural decresceu de 65%
para cerca de 14% do total. Nem porque, embora a população brasileira tenha
quase dobrado no período, estando próxima dos 200 milhões, a população rural
foi reduzida de mais de 70 milhões para cerca de 28 milhões.
Deste total, 14
milhões trabalham no campo. Cerca de 2 milhões são assalariados
das plantações comerciais do agronegócio. Os 12 milhões restantes se dispersam
por propriedades menores do que 100 hectares ou são camponeses
sem-terra. Em outras palavras, a modernização dos latifúndios quase fez desaparecer
a classe camponesa nos quase 50 anos que nos separam da decretação do Estatuto
da Terra.
O
agronegócio que resultou dessa modernização continua em sua ânsia de expropriar
os agricultores familiares, responsáveis principais pela produção de alimentos
para o mercado interno, e de reduzir o número de assalariados rurais pelo uso
crescente de máquinas modernas. E intensifica numa escala sem paralelo a
grilagem do solo das cidades, transformando-as em verdadeiros caos urbanos.
Paralelamente, a estagnação econômica resultante das crises mundiais dos anos
1970 e 1980, e a devastação neoliberal dos anos 1990, reduziu e fragmentou a
classe trabalhadora assalariada urbana e fez emergir uma classe urbana de
excluídos do mercado de trabalho, cujo número é maior do que a classe camponesa
sobrevivente.
É esse
conjunto de mudanças que faz com que, na atualidade, a luta pela terra e pela reforma agrária tenha mudado
de natureza. Se as classes populares realizassem, hoje, uma revolução
política, ou mesmo elegessem um Congresso com uma maioria de representantes da
esquerda, contando com forte apoio social e também do aparato do Estado,
incluindo as forças armadas, uma das reformas estruturais a serem efetivadas
poderia ser a nacionalização do solo, tanto rural, quanto urbano. Seria
possível construir relações sociais de produção que eliminassem ou
reduzissem a exploração, a concentração da propriedade privada, a injustiça e
as desigualdades.
Estaríamos
ingressando na fase primária de superação do modo de produção capitalista.
Realizaríamos uma ruptura com a ideia de uma reforma agrária clássica feita nos
limites do desenvolvimento capitalista. Teríamos o desafio de criar um novo
patamar de forças produtivas e de relações sociais de produção, necessárias
para outro padrão de uso e de posse da terra. No campo, assentaríamos os
poucos milhões restantes de lavradores sem-terra, melhoraríamos as condições de
produção das pequenas e médias unidades agrícolas familiares, e
transformaríamos grande parte dos latifúndios do agronegócio em fazendas
coletivas. Realizaríamos o zoneamento agrícola, garantiríamos a segurança
alimentar e utilizaríamos os excedentes agrícolas para exportação e captação de
divisas. Nas cidades, liquidaríamos a especulação imobiliária, reordenaríamos a
ocupação do solo, daríamos solução à mobilidade urbana e resolveríamos os
problemas de saneamento e distribuição de água e energia.
Em outras
palavras, como as forças produtivas do país ainda não estão suficientemente
desenvolvidas, realizaríamos uma reforma agrária e uma reforma urbana que
teriam elementos tanto das reformas burguesas clássicas quanto das reformas de
transição socialista. Isto é, os camponeses e muitos capitalistas agrícolas e
urbanos continuariam sendo proprietários de seus meios de produção, mas não da
terra, sobre a qual teriam apenas o usufruto. E surgiriam fazendas e empresas
de propriedade social, total ou parcialmente. No entanto, como reconhece a
maior parte das forças políticas de esquerda no Brasil, as
condições objetivas e subjetivas para reformas desse tipo
não estão maduras e, portanto,
não estão na ordem do dia.
Por outro
lado, existem condições para uma reforma agrária que: a) torne força realmente
produtiva a todos os trabalhadores sem-terra desejosos de viver da agricultura;
b) transforme os minifundiários em lavradores que produzam muito além de sua
subsistência; c) blinde economicamente os pequenos e médios agricultores das
arremetidas expropriatórias do agronegócio; e, d) garanta a segurança alimentar
da população brasileira, ofertando produtos agrícolas num volume que evite os
surtos inflacionários e permita preços acessíveis aos mais pobres.
Paradoxalmente,
uma reforma agrária do tipo acima é limitada, mas os camponeses não possuem
força social suficiente para impô-la aos latifundiários, tanto de velho tipo,
quanto aos capitalistas. Ou seja, os camponeses brasileiros não englobam uma
população que, por si só, possa fazer como os camponeses russos durante a
revolução de 1917, quando impuseram a divisão da terra, ao contrário da
nacionalização proposta pelos bolcheviques. Mesmo uma reforma limitada do tipo
acima depende da classe trabalhadora assalariada, dos excluídos e da
pequena-burguesia urbana entenderem que sua comida futura só será fornecida se
ela for realizada.
Por outro
lado, tal reforma agrária, se for realmente demandada pelas grandes massas
pobres e médias das cidades e do campo, pode deter a absurda redução da
produção de alimentos pelo mercado interno, em virtude da centralização máxima
da propriedade da terra pelo agronegócio e pela produção de commodities. Só a
luta urbana e rural por ela pode forçar INCRA, Embrapa, Emater e
Funai a se voltarem para atender às demandas da segurança
alimentar. Só a luta por ela pode construir uma firme aliança dos movimentos camponeses
com a classe trabalhadora, a classe dos excluídos e a pequena-burguesia
das cidades.
Do ponto
de vista econômico e social, para ser coerente com o fato de que as condições
não estão maduras para transformações socialistas, tal luta não se insere na
luta contra o capital, mas sim na luta contra o monopólio do capital. Em outras
palavras, ela está na fase de democratização do capital e de acumulação de
forças para ter condições de enfrentar o capital. Se isso não for entendido,
corremos o risco de estreitar ainda mais a luta pela terra, ao invés de
ampliá-la, e perder o embate contra o agronegócio, da mesma forma que o
perdemos em 1964 e, depois, durante os anos 1970.
*Wladimir
Pomar é jornalista e militante do PT
Nenhum comentário:
Postar um comentário