segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A propósito da reforma agrária no Brasil


Por Wladimir Pomar

O problema da propriedade do solo, tanto para a produção agrícola, quanto para a utilização urbana, sempre fez parte da luta de classes, desde que estas surgiram como decorrência da revolução agrícola e da formação das cidades, entre 10 mil e 5 mil anos atrás. Durante o escravismo antigo e o feudalismo, plebeus, mercadores, aristocratas, senhores feudais, burgueses e camponeses, em muitas ocasiões conflitaram por reformas e revoluções para resolver suas pendências em torno da propriedade do solo.

Na revolução de Avis, em Portugal do século 14, a monarquia nacionalista e os mercadores se uniram para reordenar os feudos e liberar parte da mão de obra nobre e camponesa para o comércio marítimo. No Brasil, nos primeiros séculos após a ocupação portuguesa, a luta pela propriedade do solo aniquilou a maior parte da população indígena primitiva. E estabeleceu um sistema latifundiário de sesmarias. Primeiro de plantations escravistas, fazendas de gado com agregados, e vilas urbanas e cidades de solos grilados e apossados. Depois, no final do século 19, o escravismo foi substituído pela agregação no plantio de roças, pelo colonato nas plantations de café, e pelo sistema de colonização minifundiária no sul do país.

Até meados dos anos 1960, cerca de 65% da população brasileira se encontrava nas áreas rurais, a maior parte sendo constituída de camponeses agregados aos latifúndios. Ou seja, camponeses sem-terra que pagavam ao latifundiário a quarta, a terça ou a meia do que produziam, pelo favor de trabalharem nas terras dele. Embora formalmente livres, viviam como prisioneiros por dívidas com os latifundiários. O que os conduziu, literalmente, a três movimentos de fuga dos latifúndios. Uma parte foi para as cidades em busca de trabalho na indústria, que tomara corpo a partir dos investimentos estrangeiros dos anos 1950. Outra parte se deslocou para as zonas de fronteira agrícola, onde se estabelecia como posseira. E uma outra se engajou na luta contra os latifundiários, engrossando a mobilização por uma reforma agrária.

A mobilização e a luta pela reforma agrária, na lei ou na marra, foi um dos principais pretextos para o golpe militar de 1964. Talvez isso tenha tornado nebulosa, para muitos, as razões da modernização dos latifúndios então promovida pelo regime militar. Consideram que a característica dessa modernização consistiu apenas na “revolução verde”, com o uso intensivo de máquinas agrícolas e insumos agroquímicos. 

Na prática, desconsideram que a principal razão dessa reforma conservadora foi a expropriação dos camponeses do acesso à terra e de seus meios de produção. Seu objetivo central consistiu em transformá-los em força de trabalho liberada da prisão por dívidas dos latifúndios para ser ofertada no mercado de trabalho industrial. Esta era a condição básica para o desenvolvimento econômico associado e subordinado ao capital estrangeiro e para a realização do “milagre” militar.

Sem entender isso não se consegue explicar porque a população rural decresceu de 65% para cerca de 14% do total. Nem porque, embora a população brasileira tenha quase dobrado no período, estando próxima dos 200 milhões, a população rural foi reduzida de mais de 70 milhões para cerca de 28 milhões. 
Deste total, 14 milhões trabalham no campo. Cerca de 2 milhões são assalariados das plantações comerciais do agronegócio. Os 12 milhões restantes se dispersam por propriedades menores do que 100 hectares ou são camponeses sem-terra. Em outras palavras, a modernização dos latifúndios quase fez desaparecer a classe camponesa nos quase 50 anos que nos separam da decretação do Estatuto da Terra.

O agronegócio que resultou dessa modernização continua em sua ânsia de expropriar os agricultores familiares, responsáveis principais pela produção de alimentos para o mercado interno, e de reduzir o número de assalariados rurais pelo uso crescente de máquinas modernas. E intensifica numa escala sem paralelo a grilagem do solo das cidades, transformando-as em verdadeiros caos urbanos. Paralelamente, a estagnação econômica resultante das crises mundiais dos anos 1970 e 1980, e a devastação neoliberal dos anos 1990, reduziu e fragmentou a classe trabalhadora assalariada urbana e fez emergir uma classe urbana de excluídos do mercado de trabalho, cujo número é maior do que a classe camponesa sobrevivente.

É esse conjunto de mudanças que faz com que, na atualidade, a luta pela terra e pela reforma agrária tenha mudado de natureza. Se as classes populares realizassem, hoje, uma revolução política, ou mesmo elegessem um Congresso com uma maioria de representantes da esquerda, contando com forte apoio social e também do aparato do Estado, incluindo as forças armadas, uma das reformas estruturais a serem efetivadas poderia ser a nacionalização do solo, tanto rural, quanto urbano. Seria possível construir relações sociais de produção que eliminassem ou reduzissem a exploração, a concentração da propriedade privada, a injustiça e as desigualdades.

Estaríamos ingressando na fase primária de superação do modo de produção capitalista. Realizaríamos uma ruptura com a ideia de uma reforma agrária clássica feita nos limites do desenvolvimento capitalista. Teríamos o desafio de criar um novo patamar de forças produtivas e de relações sociais de produção, necessárias para outro padrão de uso e de posse da terra. No campo, assentaríamos os poucos milhões restantes de lavradores sem-terra, melhoraríamos as condições de produção das pequenas e médias unidades agrícolas familiares, e transformaríamos grande parte dos latifúndios do agronegócio em fazendas coletivas. Realizaríamos o zoneamento agrícola, garantiríamos a segurança alimentar e utilizaríamos os excedentes agrícolas para exportação e captação de divisas. Nas cidades, liquidaríamos a especulação imobiliária, reordenaríamos a ocupação do solo, daríamos solução à mobilidade urbana e resolveríamos os problemas de saneamento e distribuição de água e energia.

Em outras palavras, como as forças produtivas do país ainda não estão suficientemente desenvolvidas, realizaríamos uma reforma agrária e uma reforma urbana que teriam elementos tanto das reformas burguesas clássicas quanto das reformas de transição socialista. Isto é, os camponeses e muitos capitalistas agrícolas e urbanos continuariam sendo proprietários de seus meios de produção, mas não da terra, sobre a qual teriam apenas o usufruto. E surgiriam fazendas e empresas de propriedade social, total ou parcialmente. No entanto, como reconhece a maior parte das forças políticas de esquerda no Brasil, as condições objetivas e subjetivas para reformas desse tipo não estão maduras e, portanto, não estão na ordem do dia.

Por outro lado, existem condições para uma reforma agrária que: a) torne força realmente produtiva a todos os trabalhadores sem-terra desejosos de viver da agricultura; b) transforme os minifundiários em lavradores que produzam muito além de sua subsistência; c) blinde economicamente os pequenos e médios agricultores das arremetidas expropriatórias do agronegócio; e, d) garanta a segurança alimentar da população brasileira, ofertando produtos agrícolas num volume que evite os surtos inflacionários e permita preços acessíveis aos mais pobres.

Paradoxalmente, uma reforma agrária do tipo acima é limitada, mas os camponeses não possuem força social suficiente para impô-la aos latifundiários, tanto de velho tipo, quanto aos capitalistas. Ou seja, os camponeses brasileiros não englobam uma população que, por si só, possa fazer como os camponeses russos durante a revolução de 1917, quando impuseram a divisão da terra, ao contrário da nacionalização proposta pelos bolcheviques. Mesmo uma reforma limitada do tipo acima depende da classe trabalhadora assalariada, dos excluídos e da pequena-burguesia urbana entenderem que sua comida futura só será fornecida se ela for realizada.

Por outro lado, tal reforma agrária, se for realmente demandada pelas grandes massas pobres e médias das cidades e do campo, pode deter a absurda redução da produção de alimentos pelo mercado interno, em virtude da centralização máxima da propriedade da terra pelo agronegócio e pela produção de commodities. Só a luta urbana e rural por ela pode forçar INCRA, Embrapa, Emater e Funai a se voltarem para atender às demandas da segurança alimentar. Só a luta por ela pode construir uma firme aliança dos movimentos camponeses com a classe trabalhadora, a classe dos excluídos e a pequena-burguesia das cidades.

Do ponto de vista econômico e social, para ser coerente com o fato de que as condições não estão maduras para transformações socialistas, tal luta não se insere na luta contra o capital, mas sim na luta contra o monopólio do capital. Em outras palavras, ela está na fase de democratização do capital e de acumulação de forças para ter condições de enfrentar o capital. Se isso não for entendido, corremos o risco de estreitar ainda mais a luta pela terra, ao invés de ampliá-la, e perder o embate contra o agronegócio, da mesma forma que o perdemos em 1964 e, depois, durante os anos 1970.

*Wladimir Pomar é jornalista e militante do PT


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